Apesar do fim de um dos piores governos para o jornalismo brasileiro, ano de 2023 deverá ser de atenção — afastamento do público, desinformação e competição com as redes sociais desafiam a construção de narrativas equilibradas

 

Por Rafiza Varão

 

Em 31 de outubro de 2022, um dia após as eleições presidenciais que deram a vitória ao ex – e agora futuro – presidente Luiz Inácio Lula da Silva, um vídeo em que jornalistas do Jornal Nacional se abraçam, comemorando o resultado, passou a circular em mídias sociais. É possível ouvir, entre alguns gritos: “acabou o inferno!”. Alívio e alegria nas fisionomias. Enquanto bolsonaristas compartilharam as imagens como prova inconteste da parcialidade da rede Globo, que passou os últimos anos sendo acusada desde comunismo até satanismo, muitos reconheceram nas cenas uma expressão do fim de um período de terror, em que a escalada de agressões contra jornalistas se tornou constante e em que o direito à informação foi continuamente vilipendiado. 

 

Simbolicamente, o vídeo curto (27 segundos) representa o fim de uma curva de erros, aprendizados e violências que o jornalismo brasileiro atravessou desde a cobertura das Jornadas de Junho, em 2013, passando pelo impeachment da ex presidenta Dilma Rousseff, até chegar à eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, e seu consequente mandato. O primeiro episódio, que se iniciou a partir de manifestações populares legítimas, culminou com a sua apropriação por uma nova direita radicalizada no país, que em 2016 se viu refletida na dedicatória feita por Jair Bolsonaro ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, e que há quatro anos faz o jornalismo brasileiro conviver (ainda) com o seu cenário mais adverso desde a ditadura militar. Com o término desse ciclo, o que esperar de 2023? 

 

Para responder a essa pergunta, sob um ponto de vista da ética, é preciso entender quais partes cabem ao jornalismo e quais fazem parte do espírito dos tempos, o zeitgeist, sobre o qual a sociedade brasileira tem caminhado nas duas últimas décadas – este último é hoje inescapável e incontrolável; os anteriores, evitáveis. 2023 traz algum desafogo, como o início da volta à normalidade democrática. Mas muito do que acompanhamos permanecerá, ainda que alterado, minimizado ou subterrâneo. Por isso, não é possível pensar no próximo ano sem revisitar o passado. 

 

Zeitgeist

 

No zeitgeist, o primeiro aspecto que se sobressai é a diminuição do interesse do público em jornais e seu produto por excelência, as notícias. O Reuters Institute Digital News Report deste ano mostrou que 38% dos pesquisados no mundo evitam notícias. No Brasil, esse número sobe para 54%. Parte disso se deve, claro, aos sentimentos associados à pandemia da Covid-19, em que a evitação da mídia noticiosa surgiu como receita para o bem estar psíquico. Contudo, outros motivos podem ser apontados para essa “evasão” de leitores, telespectadores, ouvintes, consumidores. 

 

Um deles é que o jornalismo ainda não conseguiu equacionar a competição com conteúdos das mídias sociais como forma de conhecimento sobre o mundo e nem conseguiu solucionar a sua crise de credibilidade, agravada ainda mais neste começo de século, em especial a partir, justamente, da ascensão do uso dessas mídias. Jornalistas (assim como cientistas e alta magistratura) vêm, desde então, perdendo prestígio como autoridades definidoras daquilo que é verdade ou não. Essa falta de credibilidade e o desrespeito contínuo aos profissionais de imprensa já estavam presentes, por exemplo, nas já citadas jornadas de 2013. Naquele ano, pelo menos 83 jornalistas foram agredidos de junho até outubro, quase 80% desses por policiais militares. Muitos sofreram algum tipo de violência por parte de indivíduos comuns, o que se revelaria uma tendência nos anos posteriores.

 

Outro ponto relevante é que, de lá pra cá, sobretudo a partir das eleições estadunidenses de 2016, a difusão de desinformação e fake news se tornou não só uma ferramenta poderosa na máquina eleitoral, mas um elemento de uma cultura emergente, cada vez mais forte. Nas mídias digitais, a desinformação encontrou um sistema aberto e fecundo para sua circulação e na direita digital sua grande fomentadora, aliada a novos populismos que surgem a partir dessas mídias. 

 

Essa direita remonta, de forma mais organizada, ao movimento 5 Stelle italiano, que se apoiou originalmente no blog de seu maior representante, o comediante Beppe Grillo, e que reproduzia um ressentimento em relação ao establishment, reconhecendo nas elites econômicas e políticas a causa da corrupção no país e da precarização das condições de vida dos trabalhadores. Ainda nessa constelação de culpados, a mídia tradicional surgia como parte integrante dos mórbidos planos do sistema, uma inimiga a ser combatida. A credibilidade das informações deveria estar com os cidadãos comuns, instados a produtores de conteúdo com as possibilidades da web. O jornalismo deveria ser ignorado, pois mentia tanto quanto os poderosos. Foi assim que passou a ser rotulado também como fake news por essa direita, como parte dos procedimentos de deslegitimá-lo e assegurar que as notícias, construídas a partir de critérios mais rigorosos, ficassem cada vez mais distantes de seus eleitores.  

 

blog, cujas atividades iniciaram em 2005, se tornou o mais visitado da Itália em poucas semanas e levou o 5 Stelle a conquistar, em 2013, 103 cadeiras (de 603) na Câmara dos Deputados e 54 (de 321) no Senado do país. Com o sucesso, a cartilha de Grillo chegou aos Estados Unidos, sob as bençãos de Steve Bannon, o estrategista que conduziu Donald Trump durante a campanha vitoriosa do empresário à Casa Branca, e retomou naquele país a ideia de “traidores da pátria”. O jornalismo tradicional, novamente, foi colocado neste último grupo. Desvalorizar a imprensa correspondia, inversamente, a exaltar o discurso trumpista, seguindo os preceitos do populismo digital: a eliminação de canais mediadores entre o populista e seus eleitores com o uso de mídias sociais, uso de bots, disseminação em massa de desinformação, inclusão dos eleitores em processos de produção e distribuição de mensagens, construção messiânica da imagem do populista, como salvador da pátria, inclusive com apelos ao cristianismo, como um representante da vontade divina na Terra.

 

Nesse caldeirão da emergência do populismo fake do novo milênio, o autoritarismo também se faz presente, pois esse novo líder recebe carta branca e se coloca acima das leis (e dos direitos humanos). O apelo ao povo no populismo digital é, na verdade, um apelo ao líder, que pode, inclusive, romper com os ideais democráticos para se autorrealizar como única fonte de verdade e único merecedor do lugar que ocupa. Na pauta desse populismo, um discurso moralista e conservador, além de alarmista – e, claro, falso. Por outro lado, a mídia que investigava e analisava de forma independente Donald Trump (de acordo com os princípios éticos mais basilares da profissão) passou a ser atacada. O próprio Trump se esforçou em construir essa imagem dos veículos que não atuavam como se fossem parte de seu comitê de campanha, nomeando-os de fake news e se recusando a dar entrevistas a eles

 

Não é preciso transpor as características listadas acima e adaptá-las ao contexto brasileiro para explicar de que maneira essa configuração nos atingiu em cheio também. Nos acostumamos a conviver com elas (sem nenhuma perspectiva de que essa conjuntura irá se esvair em 2023). Acompanhamos seus desdobramentos, com aproximação do clã Bolsonaro dessas estratégias, incluindo a aliança com Steve Bannon. Focada nos cidadãos ressentidos do país, que começavam a ter nas mídias sociais (em particular Facebook e WhatsApp) seus principais canais de comunicação, a tática desinformacional teve ascensão meteórica no Brasil. O famigerado kit gay, uma das fake news mais disseminadas nas eleições de 2018, teve suas primeiras aparições em 2010, já pelas mãos de Jair Bolsonaro. O material se referia, na verdade, a publicações que visavam o combate à homofobia nas escolas, voltado para educadores. Enquanto isso, as plataformas ainda não possuem uma política bem fundamentada acerca desses conteúdos, e continuam sendo usadas como a praça em que o indivíduo comum pode se sentir como elemento forte nos processos de comunicação, menosprezando aqueles que lidam com a informação de modo profissional. 

 

Com a pandemia, a essas mentiras se juntou o negacionismo científico (que já se fazia presente pela negação da crise climática, sobretudo), com a minimização da Covid-19 pelo próprio presidente da república, o que levou o país a mudar de ministro da Saúde quatro vezes, até o alinhamento das posturas do ocupante da pasta aos desejos do mandatário. Nesse ínterim, o brasileiro assistiu a uma onda gigantesca de desinformação sobre a doença e suas vacinas, muitas vezes proferidas pelas autoridades que deveriam gerir a emergência sanitária, além de um apagão de dados a partir de junho de 2020, levando à criação de um inédito consórcio de imprensa, formado pelo O Estado de S. PauloFolha de S.PauloO Globo, G1 e UOL. O objetivo foi fornecer, num momento em que o Ministério da Saúde parou de divulgar os números acumulados da Covid-19 (além da criação de um infame “placar da vida”), esses dados para a população, garantindo, de forma autônoma, o direito à informação e ao mesmo tempo cumprindo o dever jornalístico de atuar de acordo com o interesse público. O consórcio, ainda em atuação, pode servir em 2023 e nos próximos anos como ação paradigmática, acima de interesses comerciais, que una o jornalismo em torno de suas responsabilidades sociais no que tange à informação como um direito, não só como resposta a uma violação a este, mas como seu sustentáculo.  

 

No que diz respeito ao lugar que o jornalismo ocupou (e ocupa) nesse cenário que  assolou o Brasil, não foi muito diferente do que vimos em outros países em que a extrema direita passou a ter algum poder: o de inimigo do povo, o de propagador de mentiras (a não ser que se colocasse ao lado do elogio acrítico ao governo brasileiro). Essa perspectiva se acentuou nos quatro anos do governo Bolsonaro e, consequentemente, ampliou os números da violência contra profissionais da área no país. O dossiê Ataques ao Jornalismo e ao seu Direito à Informação, publicado pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) e pelo Observatório da Ética Jornalística (objETHOS), registra que nos últimos cinco anos, a violência contra jornalistas cresceu 427,5%. Agora, não são mais os policiais militares a agredirem esses profissionais. De acordo com o dossiê, os ataques partiram, em sua maioria, do próprio presidente da república, de dirigentes da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e de apoiadores de Bolsonaro, correspondendo a 71,86% dos casos. As eleições e as manifestações antidemocráticas iniciadas logo após elas, com bloqueios nas estradas e aglomerações em frente a quarteis, mostram que, no curto prazo, ainda não haverá arrefecimento desses números. 

 

Jornalismo e ética em 2023

 

Quanto ao jornalismo, que erros foram cometidos e que aprendizados podem ter saído de toda essa confusão (para usar um eufemismo)? É a partir dessa reflexão que se pode avançar em direção ao que esperar do próximo ano em relação à ética profissional e aos dilemas que se colocarão ante os jornalistas. 2018, 2019, 2020, 2021 e 2022, assim como 1968, são anos que ainda não terminaram e que carregam consigo uma série de lições atreladas aos equívocos cometidos diante da ascensão da extrema direita digital. Sob tantos riscos, o jornalismo brasileiro talvez tenha aprendido um grande ensinamento sobre a democracia (e sobre coberturas em que o equilíbrio é impossível de ser atingido): algumas vezes, é preciso assumir lados. 

 

Embora não se possa fazer um julgamento ingênuo de que era impossível antever os problemas, muitas das estruturas imaginárias que mantém a práxis – como a sobreposição das demandas jornalísticas, como um serviço público, pelas urgências comerciais dos veículos de comunicação – fizeram com que o jornalismo derrapasse ao lidar com os contextos apresentados acima. Além disso, ressalta-se que o imediatismo se acentuou com a digitalização da mídia, sobrando muito menos tempo para que os jornalistas avaliem as circunstâncias em que os acontecimentos se desenrolam, muitas vezes restando-lhes a superficialidade. 

 

Entre as estruturas imaginárias, a ideia de que sempre se pode ouvir dois lados e transformar instâncias completamente díspares em equivalentes também causou estrago. Foi o que aconteceu muitas vezes – tendo no editorial do Estado de S. Paulo intitulado “Uma escolha muito difícil” seu maior exemplo. Esse doisladismo, que se coloca como imparcialidade e objetividade, parece ignorar os riscos na formação da opinião de seus consumidores ao dar o mesmo peso a posicionamentos democráticos e a posturas que colocam em perigo a manutenção da democracia. Isso faz com que a oposição “ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos”, como requer o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, seja exercida de forma frouxa e hesitante. 

 

Essa tentativa de manter equilíbrio, que é uma exigência do trabalho jornalístico, também fez com que muitas vezes o jornalismo não nomeasse os fenômenos com os vocábulos acertados, diante de um desequilíbrio notório e exacerbado. Demorou-se muito tempo a dizer que Bolsonaro mentia, muitos anos para se falar em extrema direita. Essas ausências normalizaram comportamentos antidemocráticos e de exceção. Aceitou-se, ainda, a instrumentalização do jornalismo pelas fontes do Planalto, no cercadinho do Alvorada ou na repetição de publicações de mídias sociais em jornais, amplificando o poder de alcance destas. Em 2023, a depender do que se observa nesses primeiros meses pós-eleições, os jornalistas brasileiros parecem se encaminhar a um acerto de contas com o dicionário (e com a ética), verbalizando de modo mais claro termos como extrema direita, mentira e antidemocrático. A autocensura temerosa começa a dar sinais de  recuo, ainda que não seja possível prever o que vai acontecer com a covardia deliberada.  

 

A readequação à normalidade democrática em 2023 precisa levar em consideração as dimensões da própria democracia, que não se relaciona ao descanso, ao descuido, ao desleixo, mas à luta contínua. Como disse uma vez o filósofo espanhol Fernando Savater, “na democracia se pode tudo, menos descansar”. Se o jornalismo hegemônico (e também o independente) se ergueu para lembrar que sem ele não há democracia possível, é necessário que a partir do próximo ano se dê conta de que ele compõe a ausência de descanso, não o repouso. E a batalha não diz respeito simplesmente à livre circulação de informações, mas ao encampamento das lutas que obstruem as violências aos cidadãos, em especial aqueles aos quais a simples existência de uma legislação (ou sua própria existência) não consegue garantir proteção, em todos os níveis, físicos e/ou simbólicos – e aos quais denominamos minorias.  

 

A falta de reflexão nos momentos de impasse, pressão ou instrumentalização nos últimos anos revelou que, muitas vezes, a ética jornalística é entendida como algo estanque, uma norma que deve ser seguida de forma irrefletida mesmo que as evidências digam o contrário. Isso precisa ser revisto, pois o antidemocrático não pode ser colocado no mesmo patamar do democrático. A ética requer posicionamentos deliberados, não automáticos, pois implica decisões que nem sempre estão previstas por códigos deontológicos. 

 

O jornalismo que vai adentrar 2023 parece começar a se dar conta disso. Não se sai desses anos apenas com perdas e falhas. Ao ser atacado, iniciou um processo de se fortalecer como instituição e de repensar seu papel na construção de uma sociedade mais equânime e justa, compreendendo sua responsabilidade crucial em momentos de crise. Também foram realizados excelentes trabalhos de investigação que ajudaram na compreensão maior do quadro complexo que se desenhou, muitos deles levados a cabo por mulheres. Destacam-se aí o trabalho pioneiro de Patrícia Campos Mello, na Folha de S. Paulo, e o de Juliana dal Piva, colunista do UOL. Patrícia revelou, ainda em 2018, a tática de disparo em massa de mensagens por WhatsApp bancada por empresários em favor de Bolsonaro e contra o Partido dos Trabalhadores (PT).  Já Juliana vem, desde 2021, investigando os esquemas de corrupção que envolvem a família do presidente, e publicou a síntese dessas investigações no recente O negócio do Jair (2022, Zahar). Também foi possível perceber mudanças de direcionamento editorial em muitos veículos,  que passaram a se posicionar mais firmemente contra arbitrariedades, incluindo aí aqueles da rede Globo, citada no começo deste texto. Ainda estamos longe do ideal, entretanto. É preciso ter boa memória e discernimento quanto aos desafios que vêm pela frente. 

 

Em 2018, foi como se parte do jornalismo se lançasse, sob o comando de algum general paranóico, no Rubicão, o lendário rio italiano, e esperasse chegar tranquilamente à outra margem. Desde que Júlio César o cruzou, atravessá-lo se tornou sinônimo de uma decisão arriscada, irreversível. Transpor o curso de água era proibido, o que levou César a cunhar uma de suas frases mais conhecidas: a sorte está lançada. A façanha conduziu a uma guerra civil, à derrubada da república romana e à definição de César como ditador. Essa história não gera uma metáfora perfeita do que aconteceu ao jornalismo brasileiro, pois demos uma pequena meia volta. Contudo, ainda estamos no Rubicão, retornando lentamente. Os próximos anos serão difíceis, os problemas não evaporaram. A rejeição ao jornalismo seguirá, ainda que não mais como uma estratégia de governo.

 

Cabe ao jornalismo possível de 2023 um ajuste constante de seus rumos, e o cumprimento de suas próprias normas deontológicas, que indicam, entre outras coisas, a responsabilidade social inerente à profissão, a bússola do interesse público, o pacto pela verdade dos fatos, a defesa das minorias e do estado democrático de direito. Para além dessas diretrizes, a atuação ética exigirá (como sempre deveria ter sido), a constante ponderação. É preciso atenção. Não se pode simplesmente lançar os dados e ver o que a sorte nos reserva.

 

* Professora do Departamento de Jornalismo da Faculdade de Comunicação, da Universidade de Brasília (UnB), onde ministra a disciplina Ética e Jornalismo, Doutora em Teorias e Tecnologias da Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB). E membro do Observatório Internacional Estudantil da Informação. 

 

Este texto foi publicado originalmente pelo Portal Jornalismo no Brasil e faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2023.

A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.